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Vida episódica de Rio Preto

Dr. Lino Braile*

 Na época desta narrativa o trenzinho de bitola estreita chegando em 1912 – fazia ainda aqui ponto final e a cidade era considerada “fim de trilha” rumo a oeste. O povoado, disforme e variado, estendia-se entre os riachos Canela e Borá nas suas desembocaduras no Ribeirão Rio Preto. Tudo dava a impressão de um “far West” cheio de pujança e de vida, fadado a dar lugar a uma linda e grande cidade. Corria muito dinheiro e o comércio atravessava uma fase áurea de sólidos e grandes negócios. Dois grandes fatores contribuíram para o desbravamento dos 250 km de sertão que separavam Rio Preto das barrancas do Rio Paraná: 1º) o apoio e segurança que os recursos médicos e operatórios ofereciam às massas humanas que penetravam sertão adentro. 2º) as possibilidades que os fazendeiros desbravadores tinham em colocar suas safras no sólido e grande mercado de Rio Preto. Mas, eis que surge a crise econômica mundial de 1929, que atinge também a nossa distante e outrora rica região, trazendo graves consequências. Assim, numa manhã, proveniente do sertão do Marinheiro, chega a Rio Preto um campônio que, por sua desdita, tinha engolido a própria dentadura. Dizia-se dono de vastas terras e de numerosas manadas de gado, não possuindo, porém, numerário em consequência da crise. O Dr. Cenobelino de Barros Serra, cuja alma grande e generosa não conhecia limites, opera o inditoso e na altura da cárdia remove-lhe a mortífera dentadura. Tendo recebido alta, o paciente ruma para seu sertão, deixando uma promissória para pagamento das despesas hospitalares e honorários médicos. Depois de um ano, vencido o título e avolumando-se as dividas dos Hospitais e dos médicos, o Dr. Cenobelino resolve com dois amigos de confiança, enfrentar, em plena estação das chuvas, as precárias estradas do sertão para chegar com um “Ford 29” à casa do cliente. A comitiva deixa Rio Preto em uma manhã garoenta, não sem os protestos dos amigos que desaconselhavam a viagem.  Sertão adentro, o tempo fecha-se e, ao entardecer, a tempestade inunda a precária estrada, tornando-a um impenetrável lamaçal. O carro fica suspenso no trilho fundo, ladeado pela suntuosa mata e impossibilitando de avançar ou retroceder. Seguindo o latido dos cães, chegam a um rancho e o morador os informa que o indivíduo procurado, apelidado de “Zé do Bode”, mora a 12 km dali e que a estrada não comporta passagem. O bom homem fornece três montarias e assim a comitiva, deixando o Ford, ao anoitecer, chega à morada do “Sr. Zé”.  O espetáculo é desolador! À porta de um rancho coberto de sapé está o homem da dentadura, rodeado dos filhos desnutridos e maltrapilhos. No terreiro berram um velho bode e três cabritas magras-hiperbolizadas em pingue rebanho de bois pela fantasia do caboclo na iminência da morte. “Sr. Zé”, surpreso, na realidade de sua infeliz miséria, mas esperto e sonhador, reage e se anima. Abre as portas de seu rancho aos visitantes; propicia-lhe fogo para enxugar-se; divide com eles o magro cardápio da família e acomoda-os para dormir em improvisada camas de palha. Os três, pelo cansaço e desapontamento, dormem sobressaltados. O Dr. Cenobelino, no meio de pesadelos, com frequência desperta com a mão na carabina, pronto a ir dar termo à vida do homem que tinha salvado da morte. Os companheiros o seguram, impedindo o ato desatinado. Ao fim de uma horrível noite, finalmente amanhece.

O Ford, para grande surpresa dos três está ali no terreiro. É que durante a noite, debaixo de chuva, o “Sr. Zé”, ajudado por peões e com duas juntas de bois, emprestadas pelo vizinho, o tinha rebocado à porta do rancho.

Reunido o “estado maior” sertanejo, este decide rebocar o Ford por mais 15 km até uma estrada transitável que ia à balsa do Rio Tietê. Dali, pelas estradas mais conservadas e transitáveis da Noroeste o desafortunado Fordéco pode seguir viagem. E assim, sem ver sombra de dinheiro e ainda ficando gratos a este povo tão amável, os três itinerantes, agarrados novamente a maquina, rumam para alcançar, pelo grande circuito Araçatuba, Birigui, Penápolis, sua querida Rio Preto. Abatidos, cansados, perseguidos pelas chuvas, descansam de noite nas fazendas onde encontram boa hospitalidade. Durante cinco longos dias, as famílias não têm nenhuma notícia dos viajantes, sem nem podem sair em socorro deles, pois a implacabilidade das chuvas fechou todos os caminhos.

No sexto dia, bem de manhazinha, aparece na frente do “Café Pinho” o heroico Fordinho com o Dr. Cenobelino e os companheiros, cheios de barro, barbudos, com os olhos fundos, por terem tido a ousadia de antever cidades, estradas e riquezas, onde permanecia o sertão bruto à espera de desbravadores.

Com seu estio refinado de narrar, meu pai continua recheando o Editorial com descrições de um habitante atento, observador, otimista e visionário do crescimento da cidade. Ao final, encerra com palavras que hoje, pra nós, ressoam em tom de profecia realizada. Assim finaliza ele:

.... Rio Preto conta hoje com a recém-criada Faculdade de Medicina. Em um primeiro tempo limitar-se-á a formar hábeis médicos e técnicos para atender aos doentes provenientes da vasta zona geoeconômica cujo centro é São José do Rio Preto. Em um segundo tempo estenderá suas atividades aos estudos experimentais e de pesquisa para prestar seu contributo ao progresso da Ciência. E assim se fez ...

 

Pai de Dr. Domingo Marcolino Brasile, Dr. Lino Braile (in memorian) foi também médico.