O véu da tecnologia
Dr.
Rafael Antonio Barbosa Delsin
A História da Medicina está ligada às primeiras civilizações. Ainda que
antes pudéssemos encontrar práticas voltadas para lidar com ferimentos e
doenças, como a trepanação – que conta com registros de mais de 10 mil anos
atrás servindo para eliminar maus espíritos e para extração de tumores
cerebrais – o primeiro documento sobre a atuação de um médico surge com a
formação de sociedades organizadas. É comum, por exemplo, atribuir à medicina
egípcia o título de mais antiga do mundo. Nesse sentido, o primeiro médico da
história seria Imhotep (2655 a.C. - 2600 a.C.), que deixou um tratado com 48
casos médicos (papiro de Edwin Smith).
A medicina artesanal, fundada na anatomoclínica, foi resultado da
explosão do conhecimento científico estimulada pelo Renascimento e se centrava
na relação médico-paciente, na confiança e na livre escolha. A propedêutica e a
clínica eram as principais tecnologias diagnósticas e predominava a liberdade
na terapêutica.
Desnecessário dizer que a tecnologia foi se incorporando aos poucos e,
nas últimas décadas, seu uso cresceu exponencialmente. Telemedicina,
softwares médicos, terapia gênica, robôs cirúrgicos, Big Data, IA, impressoras
3D de órgãos, além de aliviarem sofrimentos, nos farão viver mais e melhor.
Hoje, a tecnologia também está viabilizando procedimentos médicos à distância,
o que resulta em grande economia de tempo e dinheiro, além da disseminação da
boa medicina. Quando o país tiver acesso total à internet móvel 5G será
possível realizar cirurgias complexas com a participação de um médico
especialista em São Paulo, orientando um colega do interior da Amazônia.
Médicos conduzirão ensaios clínicos com pacientes remotos e o algoritmo
permitirá tratamentos hiper personalizados. Até o fim desta década, o
atendimento digital será tão corriqueiro quanto as compras on-line de hoje. O
hospital do futuro será uma rede de ativos de entrega física e virtual
conectada por um único sistema e recursos digitais, que permitirá o atendimento
em comunidades, em casa ou em empresas, de acordo com a necessidade dos médicos
e a preferência dos pacientes.
Por um lado, novos medicamentos e diagnósticos cada vez mais precisos,
apoiados por exames de imagem, estão aumentando a expectativa de vida mundial.
Por outro, esse envelhecimento populacional eleva a incidência de doenças
crônico-degenerativas e o número de consultas e internações, superlotando os
hospitais e inflacionando os preços dos planos de saúde.
Embora muito bem-vinda, a evolução tecnológica sempre foi um fator
de encarecimento dos custos hospitalares, até por estimular a realização de
exames nem sempre necessários. Redução de custos administrativos e busca pela
sustentabilidade nunca foram tão importantes. Eficiência administrativa
tornou-se o alvo.
A medicina se transformou em business, em um setor importante da
economia. O capital não podia deixar nosso bem mais precioso (leia-se saúde)
nas mãos amadoras dos médicos. O capitalismo se apoderou dos serviços de saúde
e introduziu sua lógica. A saúde virou mercadoria e o paciente em
cliente/consumidor, fragilizando ainda mais as já frágeis bases humanistas da
medicina, outrora tão importantes. Só para se ter uma ideia, segundo pesquisa
realizada pelo Medscape (2019), 65% dos médicos gastam mais de 10 horas
semanais com burocracia. Muito provavelmente mais do que ouvindo o próprio
paciente em seus consultórios, contrariando a máxima do médico canadense
William Osler, um dos ícones da medicina moderna: "escute o paciente e ele
lhe dará o diagnóstico".
A medicina mercantilizada, apesar de seu brilho tecnológico, apresenta
problemas que podem agravar o perfil epidemiológico. É mais um sistema de
doenças que de saúde. Possui custos elevados, desigualdade no acesso aos
procedimentos, baixa satisfação do usuário e, principalmente, reflete na
redução do papel dos médicos, que se transformam em meros mascates da
tecnologia.
Contudo, como a esperança não morre, ou é a última que o faz, existem
resistências à subordinação da medicina ao grande capital, sobretudo na perda
da autonomia médica. A ciência, assim como as mercadorias, é
impessoal.
Dr.
Rafael Antonio Barbosa Delsin é 1º tesoureiro da Diretoria da APM Rio Preto.