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O decreto do fim

Leandro Freitas Colturato

            A Deusa grega Atena, divindade da sabedoria, da inteligência, do senso de justiça e das artes, não desiste da luta insana contra o Deus da destruição, Beerus. Desde os primórdios, a destruição causada por Beerus é imensurável.

A peste bubônica, século 19, marcou um dos capítulos mais mortais e sombrios da história humana, com estimativa de até 200 milhões de mortes; a gripe espanhola, entre os anos 1918 e 1919, matou aproximadamente 50 milhões de pessoas; e, mais recente, a Covid-19 resultou em quase 7 milhões de óbitos. Pode ser que Zeus, o Deus dos Deuses e pai de Atena, use os desastres naturais para nos lembrar que todos merecemos morrer um dia, até mesmo de forma prematura e violenta, mas que, em sua sabedoria, Ele concede mais tempo aos que sobrevivem para que se arrependam, reflitam e se acertem com ele.

            A origem eterna é um dos mistérios da Divindade que não temos como explicar. Se os Deuses pudessem ser totalmente entendidos, não seriam Deuses, mas seres humanos. Não podemos colocar os Deuses num laboratório para dissecá-los, pois são transcendentes e fogem à compreensão humana. Para nós é difícil a ideia de que alguém não tenha uma origem pelo fato de nossa mente, mesmo inconsciente, ser programada para tudo ter início e fim.

            No último dia 17 de abril, Beerus, atuou fortemente no Palácio do Planalto ao “comandar” o início de uma trágica batalha entre o populismo e a seriedade. A publicação do Decreto n°11.999/24 modifica drasticamente a regulação, a supervisão e a avaliação dos programas de residência médica, além de reestabelecer diretrizes para o funcionamento e de definir nova composição da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), responsável pela supervisão e regulação dos programas de especialização médica no Brasil.

            Atena, emblemática e imediata, em conjunto com as entidades e as lideranças médicas, trouxe diversos questionamentos a serem explanados: a composição da CNRM que passou a contar com o dobro de representantes do Governo Federal; a criação de Câmaras Técnicas Regionais com representantes do Ministério da Educação e da Saúde, que ampliam o poder de influência do Governo em decisões da comissão; a retirada do poder de voto do Plenário; o secretário executivo da CNRM torna-se meramente administrativo, sem direito a voto; e, a não obrigatoriedade dos membros indicados pelos Ministérios sejam médicos.

            A importância de uma residência médica transcende a compressão de muitos. Por isso, a angustia é gigantesca. Danos irreparáveis estão prestes a acontecer caso não haja uma mobilização de todas as lideranças médicas, de todas as especialidades médicas e, principalmente, de toda a população brasileira que será a mais afetada. A CNRM desempenha funções essenciais para o funcionamento e para a qualidade dos programas de residência médica: credenciamento e recredenciamento de instituição; e autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de programa.

            Hoje, com o sucateamento cada vez maior do ensino médico, o pouco que resta nas mãos de pessoas sérias, idôneas e éticas, é a formação do médico como especialista. Não podemos permitir que as especialidades médicas sejam menosprezadas da mesma forma que as faculdades de medicina. O Brasil não precisa de mais escolas médicas e, muito menos, de mais residências médicas. Precisamos de maiores investimentos no que temos: na qualidade dos serviços públicos, que refletem na formação dos novos profissionais e nos atendimentos à população; na qualificação de docentes e no incentivo à docência nas universidades; nos médicos, com uma carreira de estado a favorecer melhor distribuição dos profissionais, com condições dignas de trabalho e com atrativos para os novos médicos; nas faculdades, tornando obrigatório o Exame Nacional de Proficiência em Medicina; e na educação médica, com escolas melhores equipadas para uma boa formação teórica e prática.

            Sabidamente, a abertura desenfreada de escolas médicas no Brasil não resolve o problema assistencial. O aumento desqualificado de médicos especialistas também não. Atualmente, há 389 escolas médicas espalhadas pelo país, a segunda maior em quantidade do mundo, perdendo apenas para a Índia, nação com população mais de 7 vezes maior que a nossa. A justificativa seria, supostamente, suprir a falta de profissionais para atender a população nas diversas regiões do país, o que não ocorre. Sabemos que boa parte destas escolas são “comerciais”, “mercantilistas”, preocupam-se prioritariamente com o lucro e não com o ensino, trazendo para o mercado médicos que pouco conhecem a realidade das regiões mais carentes. Juntamente ao número avassalador de escolas, aumentam os danos decorrentes da prestação de serviços de saúde, a judicialização, o uso inapropriado das mídias socias e o desrespeito à população.

            Enquanto houver entidades médicas sérias, haverá esperança. Atena jamais desistirá. Beerus venceu nas escolas médicas, Atena haverá de vencer nas residências médicas. A Associação Paulista de Medicina jamais será contra a iniciativa de suprir carências na saúde e no ensino, mas o desafio está longe de ser simples. A nós cabe exigir que o suprimento seja profissionalizado, ético e transparente, sem qualquer viés político, para que a população mais vulnerável seja bem assistida e possa sentir-se humana novamente. Como médicos, temos a obrigação de zelar por médicos éticos e humanos, características adquiridas na formação acadêmica.

Leandro Freitas Colturato é diretor da 8ª Distrital da APM – Associação Paulista de Medicina.