Caduceu x Cajado
Dr. Rafael
Delsin
Os gregos buscavam
na mitologia a explicação para o mundo em que viviam. O povo acreditava que sua
vida dependia incondicionalmente das divindades. Asclépio, deus da Medicina,
reunia a delicadeza de um tocador de harpa e a agressividade de um cirurgião. Criado
pelo mestre Centauro Quirón, com quem aprendeu a ciência médica a partir do uso
de plantas silvestres para a cura das enfermidades, Asclépio tornou-se famoso
em toda a Grécia e são atribuídas a ele as cirurgias místicas. Zeus, ouvindo
Hades, fulminou Asclépio com os raios dos Ciclopes, pois "a ordem natural
não podia ser subvertida com a cura e a ressurreição dos mortos". A
relação entre mortais e deuses era amigável. Contudo, os deuses eram
responsáveis pelos parâmetros de conduta. Se um humano cometesse algum deslize
ético, como orgulho ou ambição, poderia ser castigado.
A serpente enrolada
no cajado é a representação da tradição médica, sendo que os símbolos estavam
ligados a valores morais, ao status social adquirido e interpretações da
Natureza. A serpente por trocar de pele representa a renovação, o renascimento.
O cajado era um símbolo de autoridade espiritual e quem usava estava em um
estágio superior de amadurecimento.
Muitas vezes, o
bastão de Asclépio, com uma serpente enrolada, é confundido com o caduceu de
Hermes, deus do comércio, dos viajantes e das estradas, que tem duas serpentes
e um par de asas na extremidade superior. Hermes é considerado desonesto, pois
roubou parte do gado de seu irmão Apolo, sendo obrigado por Zeus a confessar o
crime. Para se reconciliar com seu irmão, Hermes inventou a lira e a flauta,
presenteando Apolo. Em retribuição, ganhou o caduceu, que servia de
salvo-conduto, conferindo imunidade ao portador quando em missão de paz. A
Hermes foi atribuída a missão de mensageiro dos deuses do Olimpo por ter a
capacidade de se deslocar rapidamente. Como o comércio na Antiguidade era
ambulante, foi consagrada como o deus do comércio.
Mais de um fato
histórico concorreu para que o caduceu de Hermes fosse utilizado erroneamente
como símbolo da medicina. Um deles teria origem nas trocas culturais entre as
civilizações grega e egípcia e outro é atribuído ao desenvolvimento das
ciências ocultas e da alquimia, entre os séculos III a.C. e III d.C.
Fato incontestável
é que o mercado de saúde no Brasil está cada vez mais predatório. O resultado é
a junção da fome com a vontade de comer. Daí nascem as grandes operações de
fusões e aquisições no mercado. De acordo com relatório da Transactional
Track Record, no primeiro trimestre de 2021, este mercado aumentou 52% em
relação ao mesmo período do ano anterior no país, tendo registrado um
total de 1.453 transações. Em um país com prolongada recessão/estagnação
econômica e crise sanitária, não é mera coincidência que as operadoras de saúde
estejam nas mãos dos empresários mais ricos do Brasil, que até figuram como
novos bilionários em listas de revistas internacionais de economia. Com a
omissão dos órgãos competentes, empresas aplicam sucessivos reajustes às
mensalidades com a justificativa de variação dos custos "médicos".
Sem uma forte fiscalização, a saúde suplementar é terra fértil para empresários
que tratam o bem-estar da população como negócio. Ora, se os compradores estão
capitalizados e procurando oportunidades de investimento e o mercado está
ficando inevitavelmente mais consolidado, obviamente os menores terão mais
dificuldades em concorrer com os maiores.
Hipócrates teria
razão em ficar perplexo. Atualmente, quando o capital é a alavanca que move o
mundo, a ética dá lugar ao vale-tudo. Até mesmo o médico, que prometeu exercer
a arte de curar, mantendo-se sempre fiel aos preceitos da honestidade, da
caridade e da ciência, pode se contaminar com a quantidade de ofertas
comerciais para tornar sua profissão mais lucrativa.
Talvez o caduceu de
Hermes esteja vencendo a batalha contra a serpente do cajado de Asclépio.
Dr. Rafael Delsin é
1º secretário da APM – Regional de Rio Preto.